Fibrose cística: Também chamada “doença do beijo salgado”

Conhecida também como mucoviscidose, a fibrose cística é uma doença genética grave que se caracteriza pela alteração no movimento do sal e dos fluídos no organismo humano, o que compromete vários órgãos, principalmente os pulmões. Ela foi descrita por Karl Landsteiner em 1902.
O médico alemão descreveu a necróspsia de um bebê morto aos 3 dias de vida por obstrução no intestino.
Seu pâncreas era menor do que o normal, com tecidos fibrosos, ou seja, endurecidos, e cheios de cistos, por isso o médico chamou a doença de fibrose cística do pâncreas.
Em 1938, a patologista norte-americana Dorothy Andersen descreveu o acontecimento também de outros órgãos.

A fibrose cística é a doença genética mais comum na raça branca, mas tem sido relatada cada vez mais na população miscigenada, isto é, misturada com brancos, europeus e africanos. É rara em asiáticos. Descobriu-se em 1989 que se deve a uma alteração em um gene do cromossomo 7. Ocorre em homens e mulheres. Estima-se em 3.000 os doentes no país e 50.
000 no mundo.

Por falta de conhecimento, vale destacar, a doença e subdiagnostigada no Brasil. Mas pode-se levar a suspeita de que um bebê seja portador ainda no útero materno ao se fazer um ultrassom, com o qual se constata o acúmulo excessivos de líquidos no órgão por obstrução do intestino do bebê, por exemplo, complicação que ocorre em 15% deles.

Em geral, depois do nascimento o bebê se mostra faminto, mas tem muita dificuldade para se desenvolver e ganhar peso. Suas fezes, por outro lado, são oleosas e fétidas demais. Os dois problemas resultam do fato de seu pâncreas  não produzir as enzimas necessárias para a digestão dos alimentos e a consequente absorção de seus nutrientes.

Outras indicações da fibrose cística são:

  • Comprometimento dos pulmões, pelo fato de seu muco ficar desidratado e espesso, o que facilita a inflamação e infecção por bactérias, causando tosse crônica, doença que se confunde com bronquite, asma, pneumonia de repetição;
  • Suor com excesso de sal, porque as glândulas produtoras de suor não retém o sal de maneira adequada, fazendo as crianças suarem demasiadamente e apresentarem um suor com elevado teor de sal, o que levou a fibrose cística a ser chamada “doença do beijo salgado”;
  • Ausência dos canais deferentes (impedindo a chegada do espermatozoide ao esperma), que não se formam na fase de desenvolvimento do bebê no útero da mãe e, nos casos mais graves, ele acaba ficando estéril.
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Durante muito tempo, por falta de conhecimento, muitos portadores morriam nos primeiros anos de vida. Infelizmente, ainda hoje a doença é subdiagnosticada em média aos 6 anos e meio, o que é tarde. Mas os pais precisam ficar atentos aos seus filhos, em especial se estão no grupo de risco.
Se apresentarem sintomas devem leva-los logo ao pediatra, a um clínico gral ou  a um pneumologista.
Uma boa alternativa é buscar um especialista nos serviços específicos da doença existentes nas faculdades em grandes cidades e nas capitais.

Fibrose cística ainda não tem cura. Mas pode ser tratada com remédios, diminuindo as consequências para os portadores, como as doenças citadas e a morte prematura, e aumentando a sua expectativa de vida.

Pesquisa

Pesquisa desenvolvida no Laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp pelo biólogo e doutorando em pediatria Fernando Augusto de Lima Marson analisou sete genes associados à fibrose cística em 181 pacientes atendidos no Ambulatório de Pediatria do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp.
O pesquisador baseou-se nas funções, características e polimorfismos – variações genéticas – para averiguar a incidência e a associação dos genes com o quadro clínico da doença.

A fibrose cística é uma doença hereditária. Os sinais clínicos que a caracterizam são a doença pulmonar crônica e progressiva e a insuficiência pancreática. Ela afeta os aparelhos digestivo e respiratório. Dois por cento da população mundial são portadores assintomáticos de mutações no gene associado à fibrose cística.
Muitos indivíduos com fibrose cística morrem jovens, em torno de 25 anos de idade.
As crianças são mais afetadas e a expectativa de vida é de, aproximadamente, 15 anos.

Ao nascer, a criança com fibrose cística apresenta pulmões estruturalmente normais. Com o tempo, as sucessivas infecções e inflamações culminam com hipertensão pulmonar e insuficiência respiratória crônica. Problemas no sistema respiratório ocorrem em mais de 90% dos indivíduos com a doença, de forma progressiva e de intensidade variável.
Esta intensidade de acometimento é o que determina o desenvolvimento da doença.
Bactérias, vírus e fungos são os responsáveis pelas infecções pulmonares.
As bactérias mais frequentes em adultos são a Pseudomonas aeruginosa, em 83% dos casos; Staphylococcus aureus, em 60% e Haemophilus influenzae, em 68% dos casos observados.

Em países de grande miscigenação racial, como o Brasil, a doença pode manifestar-se em todo o tipo de população. Não existe variação de incidência em função do sexo, afetando homens e mulheres de maneira igual.
Mulheres com fibrose cística têm mais dificuldade para engravidar porque o muco cervical mais espesso dificulta a passagem dos espermatozoides.
Já 98% dos homens são estéreis, embora tenham desempenho e potência sexual absolutamente normais.

A pesquisa rendeu a Marson vários prêmios. O mais recente ocorreu em maio de 2012 no IV Congresso Brasileiro de Fibrose Cística.
Além dos prêmios, a pesquisa oriunda da dissertação de mestrado “Análise de genes modificadores relacionados à gravidade da Fibrose Cística”, defendida no ano passado, deu origem a cinco artigos científicos encaminhados para publicação em revistas nacionais e internacionais, como o Journal of Cystic Fibrosis.
A orientação foi dos professores Antônio Fernando Ribeiro, do Departamento de Pediatria, e Carmen Silvia Bertuzzo, do Departamento de Genética Médica.
 “Os genes estudados estão envolvidos com a doença pulmonar que é a principal causa de mortalidade e agravamento clínico dos pacientes com fibrose cística.
O diagnóstico precoce da doença pulmonar, baseado nas diversas associações desses genes, pode contribuir para a sobrevida e melhora da qualidade de vida dos pacientes, pois permite o acompanhamento e manejo dos sintomas clínicas que compõem a doença”, revela Marson.

Gene candidato

De acordo com a pesquisa, o gene Cystic Fibrocis Transmembrane Conductance Regulator controla a produção da proteína CFTR que regula a transferência de cloreto de sódio (sal) através das membranas celulares. Mais de 1.
900 mutações foram descritas e divididas em seis classes de acordo com o mecanismo por meio do qual a proteína CFTR alterada se apresenta.

A doença desenvolve-se somente quando o indivíduo apresenta dois alelos mutados no gene, transmitidos pelo pai e pela mãe. Alelo é cada uma das várias formas alternativas do mesmo gene. Quando os dois alelos no gene CFTR são anormais, a transferência de cloreto de sódio é interrompida.
Isto causa desidratação e aumento da viscosidade das secreções, principalmente nos pulmões.

A fibrose cística é causada por mutações no gene CFTR. Existe baixa correlação entre as mutações no gene CFTR e o quadro clínico dos pacientes. Estudos de fatores ambientais e genéticos podem contribuir para o melhor entendimento da fisiopatologia desta doença.

Para a pesquisa, Marson selecionou sete genes para estudo: ACE, GCLC, GSTM1, GSTT1, GSTP1, NOS-1 e ADRB2. Esses genes são chamados de genes modificadores, pois modulam a gravidade da doença, juntamente ao fator ambiental e gene responsável pela doença – no caso gene CFTR -, e estão relacionados, principalmente, com o quadro pulmonar da doença.

O gene ACE codifica a enzima conversora da angiotensina, que possui função pró-inflamatória. Estudos indicam que talvez este gene esteja relacionado com o desenvolvimento do dano pulmonar grave em pacientes com fibrose cística.

O gene GCLC codifica a glutamato-cisteína ligase, enzima que limita a síntese da glutationa (GSH), um tripeptídeo composto pelos aminoácidos, glicina, ácido glutâmico e cisteína, cruciais no sistema de defesa antioxidante intracelular e extracelular.

Os genes GSTM1, GSTT1 e GSTP1 fazem parte da família de enzimas GST que compreende diversos grupos de proteínas com característica e origem genética distintos. Formam um sistema de eliminação de substâncias consideradas tóxicas ao organismo e fornecem proteção contra compostos de síntese orgânica e produtos do estresse oxidativo.
Devido à propriedade de conjugar os compostos que causam estresse oxidativo com a GSH, postula-se que os polimorfismos na família de genes GST possam estar envolvidos na gravidade da fibrose cística, principalmente no que diz respeito ao quadro pulmonar.

O óxido nítrico (NO) tem sido associado a diversos processos que regulam a defesa contra microrganismos patogênicos, inflamação e o controle broncomotor nos pulmões. O gene NOS-1 contribui significativamente com o NO nas vias aeríferas – nariz externo, cavidade nasal, faringe, laringe e parte superior da traquéia.
Há diversos estudos correlacionando o NO como gene modificador na fibrose cística, porém com poucos marcadores de gravidade clínica ou amostragem reduzida.

O gene ADRB2 codifica uma proteína presente nas células das vias respiratórias na qual atuam os medicamentos broncodilatores. Essas desempenham múltiplas funções nas vias aeríferas, sendo: relaxamento da musculatura lisa, inibição da liberação de mediadores das células inflamatórias e aumento expectoração de muco presente no pulmão.

O biólogo usou a técnica de Polymerase Chain Reaction (PCR) nos genes ACE, ADRB2, GSTM1 e GSTT1 para a análise. Para os genes GSTP1 e GCLC, foi realizada digestão enzimática e para o gene NOS-1 foi realizada a técnica de genotipagem no sequenciador automático de DNA.
Os dados obtidos foram correlacionados com as características clínicas dos pacientes, associados com 28 variáveis, principalmente, do quadro pulmonar e comparados por meio de análise estatística.

De acordo com o estudo, as atuações do ambiente e dos genes modificadores influenciam juntamente as mutações do gene da fibrose cística, na gravidade da doença. Os polimorfismos analisados nos diferentes genes modificadores apresentaram associação com as variáveis clínicas utilizadas como marcadores.
Um dos achados inéditos da pesquisa foi o gene ADRB2 que foi associado à broncoconstrição.
Segundo a pesquisa, os brondilatadores podem ter efeito contrário em alguns pacientes com fibrose cística.
 “Todos os genes modificadores estudados tiveram associação com as variáveis clínicas.
Eles influenciam na evolução da doença.
Alguns tiveram relação com a resistência bacteriana a medicamentos, como é o caso de Pseudomonas aeruginosa”, disse.

Na Europa e Estados Unidos, segundo Marson, há pesquisas sobre medicamentos para o tratamento da fibrose cística. Eles usam fármacos que “consertam” a proteína que causa a doença ou alteram a expressão proteína. A diferença é que a população desses países é mais homogênea e as mutações genéticas são as mesmas.
No Brasil, por causa da miscigenação, isso não se aplica da mesma forma e o estudo de novos fármacos está em fase inicial no país.

Marson pretende criar uma tabela ou diretriz que auxilie no manejo ambulatorial e tratamento dos pacientes. A ideia de condicionar o tratamento e manejo do paciente ao seu perfil genético é nova.
 “Se a genotipagem do paciente indicar que ele tem propensão à bactéria Pseudomonas aeruginosa, por exemplo, a indicação será para evitar o contato com pessoas ou locais onde a proliferação da bactéria é mais elevada”, explica o biólogo.

Entretanto, ressalta o pesquisador, o Sistema Único de Saúde (SUS) não cobre a pesquisa genética, por ela ser dispendiosa. Atualmente, o tratamento da doença pulmonar crônica decorrente da fibrose cística é com antibióticos e outros fármacos. “Isto, em longo prazo, torna-se oneroso.
Se você avaliar o quanto de antibiótico o paciente terá que tomar ao longo dos anos, a pesquisa genética apresenta melhor custo-benefício, tanto ao governo, quanto ao paciente.
Estudar a clínica associada com diferentes genes pode ser uma nova diretriz para o tratamento, o manejo e o acompanhamento do paciente.
Há um ganho significativo em sua sobrevida, pois podemos ‘prever’ como a doença irá se desenvolver no futuro”, diz Marson.